A Convenção Nacional da Saúde em 2019
Ana Paula Martins, Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos
Na terceira reunião da que é a maior plataforma de debate da saúde em Portugal, foi a voz dos cidadãos que quisemos destacar. Porque é para os portugueses que somos, que o sistema nacional de saúde tem que ser capaz de cumprir a sua missão: criar valor para os cidadãos e cumprir a sua função de acelerador da coesão social e territorial respondendo aos desafios de hoje mas, sobretudo, de amanhã.
Importa nunca esquecer… “que o princípio e o fim, o alfa e o ómega, do Serviço Nacional de Saúde (SNS), têm nomes e tem rostos. E tem biografias e tem dramas. São as pessoas. São os Portugueses.” [Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República na primeira Reunião da Convenção Nacional da Saúde].
E é isto que nos une e que jamais poderemos esquecer.
E foi pelos portugueses que esta Convenção, feita por portugueses, se concretizou. Para fazer parte de um debate que acrescente sucesso a uma história de sucesso. Sem agendas corporativas, participada, plural, não partidária. Uma convenção que dialoga com o futuro, não se consumindo na espuma dos dias em que os problemas persistem, mas cuja solução cabe a quem governa e só quem governa pode essa responsabilidade assumir. E quem Governa hoje e amanhã, terá sempre nesta Convenção o suporte da sociedade para justificar o óbvio: não investir na saúde é socialmente inaceitável.
Esta Convenção veio para ficar e está para durar.
Porque tem uma Agenda para a Década. Transversal, suprapartidária, com um desígnio nacional: Saúde para Todos.
Vivemos hoje uma época difícil e complexa. Difícil, porque o Serviço Nacional de Saúde, a nossa jóia da coroa, dá sinais de cansaço depois de anos seguidos de resiliência e resistência dos profissionais, redução de horários de trabalho sem os consequentes planos de reorganização e incentivo à produtividade, sem a renovação das infraestruturas, sem autonomia na gestão, com falta de investimento planeado, reforço do capital humano, aposta séria na prevenção e literacia. Anos de impactos diversos sobre todos os agentes que operam na cadeia de valor em saúde. Anos de desesperança muitas vezes, sem estabilidade ou previsibilidade nas políticas.
Anos em que qualquer estrada nos serviu porque, muitas vezes – demasiadas vezes – não tivemos a coragem e a liderança necessárias para fazer o caminho que sabíamos estar certo e que requeria a o desassombro de aproveitar os bons exemplos, de utilizar a capacidade instalada na sua plenitude, de renovar para transformar. Mas o País muda, as pessoas mudam, as famílias mudam porque o mundo é global e nós somos cidadãos do mundo. E o Sistema Nacional de Saúde, o seu SNS em particular, não é nem pode ser um espaço imutável, uma aldeia isolada num ecossistema amplo e universal.
Ao SNS é há muito tempo pedido que faça o possível e o impossível, que integre a inovação tecnológica e terapêutica sem financiamento adicional, que motive os profissionais sem sistemas de incentivo adequados e carreiras organizadas, que seja inclusivo e não deixe ninguém para trás, que seja porto de abrigo dos casos sociais, que assuma que o cidadão é o centro do sistema quando ao cidadão são vedadas as possibilidades de participação já constantes até na Lei.
Por isso é tempo de ação. De uma ação ponderada, realista, mas com ambição. E é um excelente momento, pela proximidade das eleições legislativas, para que os agentes políticos apresentem as suas propostas concretas para solucionar os problemas concretos e, sobretudo valorizar as oportunidades também elas concretas e já há muito identificadas.
E tudo isto porquê? Porque os portugueses não podem ter listas de espera de anos por uma primeira consulta da especialidade ou cirurgias, não podem ter as enormes falhas de medicamentos que têm atualmente na nossa rede de farmácias, não podem esperar eternidades por tratamentos inovadores que podem fazer a diferença, não podem continuar a não ter cuidados continuados e paliativos para si e para os seus quando necessitam, que não só gera sofrimento e desesperança, mas sobrecarrega desnecessariamente as famílias e os cuidadores, exaustos e perdidos num sistema que não é amigo do cidadão.
Centrar o sistema de saúde no cidadão não é adiarmos sistematicamente o acesso universal à saúde mental e a saúde oral como se não se tratasse de prioridades. Ou continuar a ter um sistema de comparticipação de medicamentos que, passados 20 anos, se centra na terapêutica e não maioritariamente no doente.
E continuamos, apesar dos alertas, a manter nos hospitais, camas sociais com internamentos médios prolongados, ao invés de “desospitalizarmos” as pessoas, de as tratarmos em proximidade. Centrar o sistema no cidadão é resolver de uma vez problema da sobrecarga das urgências, através das estruturas de proximidade para que os cidadãos saibam que podem e devem ser tratados ao pé de casa, ou mesmo na sua casa, no seu bairro, na sua aldeia. Que não terão pior saúde por isso. Pelo contrário, dessa forma terão o conforto, a humanização que só a proximidade e afetividade dos amigos e da família podem garantir e concretizar. Por isso, no âmbito da descentralização de competências para os municípios e no reforço das associações de pessoas que vivem com a doença, se podem concretizar enormes oportunidades de promover esta proximidade.
O SNS e o Sistema de Saúde não podem ser uma fonte de problemas para os Portugueses. Têm de ser a solução permanente, um fator de confiança nas nossas vidas, um vetor de desenvolvimento e de captação de investimento, um orgulho para o País.
Entre reformas incrementais e disruptivas, é tempo de libertar o potencial do sistema de saúde enquanto sector económico determinante para Portugal, que qualifica e emprega, catalisador de uma cultura de coesão social e territorial, renovada na necessária cultura de solidariedade intergeracional. Que tem que ser incentivada. E isso implica, não darmos como adquiridos direitos que, mesmo constitucionalmente consagrados, têm que ser insistentemente protegidos.
Esta Convenção materializa a nossa ambição para o futuro, o nosso futuro, o futuro dos nossos filhos, dos nossos netos, dos nossos pais. O futuro do nosso País. Não queremos viver presos ao passado porque já não somos, felizmente, esse país onde a esperança média de vida não ultrapassava os 69 anos e em cada 100.000 partos realizados morriam 43 mulheres.
Hoje temos outros desafios, que a longevidade, a Ciência, a Ética, a disrupção tecnológica, a literacia, a prevenção da saúde e bem-estar, nos convocam a reconhecer numa agenda para a próxima década. Uma verdadeira agenda para o Século XXI. Que ao ambicionar o desígnio Saúde para Todos, assume que a saúde em todas as políticas é uma inevitabilidade. Porque, entre outras razões, os maiores determinantes da saúde são a pobreza e a desigualdade, que não se resolvem no Sistema de Saúde e no SNS.
Nesta convenção aberta, com a necessária diversidade ideológica, unem-nos princípios comuns que a nossa Lei Fundamental consagra e o exercício político dos necessários consensos exige. Uma Lei que continue a traduzir o caminho que fizemos e não nos recoloque no ponto de partida, num País que já não somos e que não voltaremos a ser. Essa é a oportunidade. Voltar atrás não pode ser uma possibilidade.
Por isso reafirmamos que:
1. A saúde é um direito humano. Por isso é um tema que tem que ser tratado nas dimensões Ética, de responsabilidade do Estado, de participação regulada dos agentes. E sendo um tema universal, presente nos desafios do milénio, promove o progresso civilizacional sustentável e, por isso, tem que ser garantido de forma soberana. É matéria de soberania nacional.
2. O Sistema de Saúde é complexo e não pode ser objeto de intervenções pouco pensadas, sujeita a imediatismos eleitorais ou interesses conjunturais. Na saúde não chega fazer muito… tem que se fazer bem. E defender o interesse público, que não tem cor política nem é propriedade de uns ou outros. O bem comum faz parte da defesa intransigente de princípios fundacionais da democracia e realiza-se na atitude de cada um de nós. Todos somos responsáveis pelo bem de todos e temos, por isso mesmo, responsabilidades não apenas de identificar o que está mal, mas de apresentar soluções. Aqui o como faz toda a diferença. O quê já nós sabemos e conhecemos! E aqui, enquanto cidadãos temos de assumir as nossas responsabilidades de combate ao consumo de recursos desnecessários, a preservação da nossa saúde individual e coletiva, recusando soluções terapêuticas ou outras sem evidência científica e que só cumprem agendas de desresponsabilização do Estado, aproveitam iliteracias e prometem os “El-Dorados” da saúde e bem-estar a doentes sem esperança e a cidadãos menos informados.
3. Nesta Convenção estudamos os problemas, debatemo-los entre nós, conciliamos os dissensos, somos transparentes, porque temos um objetivo maior em comum: Saúde hoje e Saúde amanhã, para depois de nós. Sabemos que sem saúde voltaremos a ser um País menos desenvolvido económica e socialmente. Sem um bom sistema de saúde não seremos uma geografia atrativa. Sem Saúde, a pobreza e as desigualdades serão ainda maiores. E por isso, a área da saúde é uma prioridade sobre a qual os Portugueses, que trabalham muitos dias do ano para conseguir pagar os seus impostos, não querem deixar de ter uma palavra a dizer.
4. Temos sub-financiamento na saúde de forma crónica. Todos os Relatórios o apontam e a Comissão Europeia disse-o recentemente. Mas nem precisava de dizer e escrever, nós sabemos e sentimos. E isso corresponde a uma opção política que tem vindo sucessivamente a ser concretizada, porque olha para a saúde como uma despesa e não como um investimento que torna o país economicamente mais viável. É altura de perguntar aos portugueses onde querem ver o seu dinheiro investido. A qualificação da nossa democracia vai levar-nos obrigatoriamente à mobilização participada dos cidadãos nos seus destinos.
O retrato da Comissão Europeia para Portugal não poderia ser mais claro: Em termos per capita a despesa pública de Saúde em Portugal fica a menos de metade da média da UE – de 1.297 para 2.609, em paridade de poder de compra.
E das duas uma: ou os outros Países andam a desperdiçar dinheiro em tempos económicos difíceis ou nós em Portugal continuamos incapazes de reconhecer que o investimento em saúde transforma a Sociedade.
E continuamos a insistir no status quo, demasiado acomodados para mudar, capturados por preconceitos que não se justificam à luz da evidência. Gastamos energias vitais a discutir o acessório, os modelos de relacionamento entre os privados e o público, o espaço do sector de economia social, indiferentes à perplexidade e indiferença dos cidadãos perante temas que não percebem e sobretudo que nada acrescentam à sua vida quotidiana.
Entretanto os problemas multiplicam-se todos os dias, as pessoas procuram soluções de todas as formas para conseguir a consulta que esperam há seis meses, para obter o medicamento que precisam, para não esperar dois anos por uma cirurgia. Estas são as dificuldades reais de pessoas reais. E as conceções do sistema, sendo determinantes, têm que se adaptar às necessidades reais das pessoas. Senão servem para pouco. E o SNS como matriz identitária do Sistema Nacional de Saúde tem que servir para muito, porque trata 6 milhões de portugueses e 10 milhões quando se trata de tratamentos para o cancro e VIH e planos de vacinação, por exemplo. E tudo isto tem que acontecer a par do reforço dos pilares éticos-jurídicos e de humanização que um sistema de saúde universal, equitativo e solidário não pode deixar de ter.
E na Agenda para o Cidadão, são os cidadãos que apontam como 3 das 14 prioridades para a agenda da década:
1. Defender uma gestão mais humanizada do doente. Para assegurar a qualidade de vida do cidadão.
2. Promover o valor da saúde em todas as políticas. Para garantir o acesso do cidadão ao Serviço Nacional de Saúde.
3. Assegurar, na definição das políticas de saúde, a participação dos cidadãos e dos representantes dos doentes e cuidadores. Para maximizar o impacto e os resultados em saúde.
Esta agenda, hoje divulgada, permitirá cumprir a visão que os cidadãos assumem de “nada para nós sem nós” visão que temos mais e mais de incorporar nas políticas de saúde.
Mas esta agenda clarifica e reforça, por exclusão, também o que não queremos!
Não queremos um SNS para os pobres, porque isso seria o fim da universalidade, equidade e solidariedade como a conhecemos e idealizámos e marginalizaria no sistema os que, por via do rendimento, não podem exercer a sua liberdade de escolha.
Não queremos ser geridos por preconceitos, conflitos de interesse, decisões pouco informadas, sem avaliar o que se faz de forma transparente seja público, privado ou social.
Não queremos que o SNS continue a assumir como uma inevitabilidade as dívidas aos fornecedores, sempre encarado pelas Finanças como o parente gastador dentro de Executivo.
Porque a Saúde é um motor de desenvolvimento para Portugal. Em 10 anos, se fizermos o que está certo, sem ziguezagues conjunturais, passaremos de 1,4 mil milhões de euros de exportação para o dobro, sensivelmente 3 mil milhões de euros no sector da saúde. A saúde, porque alicerçada no conhecimento e na tecnologia, é um dos nossos pontas de lança na internacionalização.
Por isso reafirmamos que nesta convenção renovar o SNS, é respeitar a sua identidade, os seus princípios, a sua história e a sua evolução. Não é um regresso ao passado. É olhar para o futuro, projetando-o com tudo o que aprendemos.
O SNS é popular e estimado. Foi e é um projeto que nos uniu e une no essencial. Projeta-nos enquanto povo, abre-nos horizontes, estimula a nossa motivação e capacidade de criar. É um selo de confiança para os portugueses. E assim tem de continuar. Para isso tem de se revitalizar, reorientar, continuar a atrair capital humano de qualidade. O SNS e o Sistema Nacional de Saúde dos próximos 40 anos serão necessariamente muito diferentes porque mora num admirável mundo novo, que não podemos parar. Teremos sim de o modernizar ao serviço dos portugueses.
E hoje, nesta Convenção, unindo o que não pode estar disperso, impedindo que se deslace o que não pode ser deslaçado, que demos mais um contributo para este futuro. Muito obrigada.
A Convenção Nacional da Saúde em 2018
Unidos pela Saúde dos Portugueses
A Convenção Nacional da Saúde foi assumidamente inspirada pelo Senhor Presidente da República que, em março de 2016, afirmou que “A Saúde é um domínio em que eu penso que é fácil chegar a um consenso nacional.” Depois, em 2017, as Ordens Profissionais da Saúde realizaram um Encontro alargado para debater “O futuro do financiamento da Saúde em Portugal”.
E no final do ano passado ouvimos, mais uma vez, a interpelação do Senhor Presidente da República de que «este é um momento que pode não ser repetível, de alguma folga, para um debate sereno sobre o Sistema de Saúde» entre «dois grandes hemisférios que se dividem relativamente à Saúde em Portugal», quanto ao papel do Estado, das instituições particulares de solidariedade social e dos privados, e que devem tentar chegar a um compromisso.
Os agentes do setor da Saúde, e os portugueses em geral, não podiam ficar indiferentes a este apelo, tanto mais quanto a Saúde é um bem precioso, nas mais diversas perspetivas, e é reconhecido que o Sistema de Saúde em Portugal vai enfrentar grandes e inéditos desafios num futuro próximo.
A Convenção Nacional da Saúde foi pensada para responder a este repto. Ser o maior debate nacional de sempre sobre o presente e o futuro da Saúde em Portugal.
Queremos que a Convenção seja o mais abrangente possível, com todas as classes profissionais da saúde, com os cuidados de saúde primários, com o hospitalar e com os cuidados continuados e paliativos, com o público, o social e o privado, do Continente e das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
A Convenção Nacional da Saúde teve o seu lançamento num evento realizado nos dias 7 e 8 de Junho de 2018, na Culturgest em Lisboa, em que, para além da oportunidade de debater apresentações de especialistas internacionais, promoveu-se a discussão, em 9 conferências distintas.
A Agenda para a Década
Dos contributos recebidos desde o lançamento público da Convenção Nacional da Saúde e das reflexões efetuadas nos dias 7 e 8 de Junho de 2018, resultaram conclusões que, tal como decorre do objetivo anunciado, corresponde a uma “Agenda para a Década”.
Já em 2019, depois de um período de trabalho e reflexão, as Associações de Doentes que integram o Conselho Superior da Convenção Nacional da Saúde 2019 apresentaram em Lisboa, a 18 de Junho, um conjunto de recomendações – Plano Integrado para as Doenças Crónicas e Raras – e que agora integram a “Agenda da Saúde para a Década”.